Faz hoje precisamente
95 anos. Dois oficiais da Marinha de Guerra, os comandantes Jorge de Sacadura
Freire Cabral (1881-1924) e Carlos Viegas Gago Coutinho (1869-1959) iniciaram
aquela que seria a primeira travessia aérea do Atlântico Sul. Depois de todas
as terras terem sido descobertas, de todos os mares terem sido navegados,
chegara a vez de explorar os ares por onde nenhum ser humano tinha estado,
desafiando rotas cada vez mais longas e arriscadas. A primeira travessia sobre
do Canal da Mancha, pelo francês Louis Blériot (1909); do Mediterrâneo, por
Roland Garros (igualmente francês, em 1913); do Atlântico Norte (da Terra Nova
à Irlanda) pelos norte-americanos Alcock e Brown, em hidroaviões da Marinha dos
EUA (1919).
Mas os
portugueses também fazem das suas. Em Outubro de 1920, dois aviadores da
Aeronáutica Militar (do Exército), José Manuel Sarmento de Beires e António
Brito Pais tentam a travessia de Lisboa à Madeira num bombardeiro Breguet 14. É
uma verdadeira aventura: um vôo directo de 1500 Kms sobre o mar, sem rádio nem
navios de apoio, num avião com trem de aterragem de rodas, e portanto incapaz
de amarar em caso de emergência. Atingida a Madeira, a ilha está envolta em
nevoeiro cerrado, e os aviadores são incapazes de se orientar e aterrar.
Esgotado o combustível, despenham-se no mar. Mas como a sorte protege os
audazes, acabam por ser salvos, milagrosamente, por um cargueiro inglês que por
eles passa, por mero acaso.
No ano
seguinte, aquando da compra por parte da Marinha de dois hidro-aviões
torpedeiros em Inglaterra, Sacadura Cabral (aviador) e Gago Coutinho
(hidrógrafo) propõem a encomenda de um terceiro, modificado sob especificação
(asas de maior envergadura, sem armamento e com muito maior capacidade de
combustível) para tentar a travessia do Atlântico Sul no ano seguinte, por
ocasião do centenário da independência do Brasil. A ideia é aceite, e assim a
Marinha recebe o Fairey IIID F-400, que é baptizado de «Lusitânia».
Mas a
viagem Lisboa-Rio de Janeiro é bastante mais ambiciosa que todos os anteriores
vôos sobre o mar. Totaliza 8000 quilómetros, em grandes etapas voadas em larga
medida de noite, sem outra referência que não as estrelas, e por diferentes
regimes de vento. Para possibilitar o vôo sobre grandes extensões de oceano de
noite, Gago Coutinho adapta o sextante para o uso em navegação aérea, dotando-o
de um horizonte artificial. Depois de efectuada a primeira travessia bem-sucedida
até à Madeira, em 1921, a grande viagem tem início a 30 de Março de 1922,
quando às 16h30 o «Lusitânia» sai da base de hidroaviões na Doca do Bom
Sucesso, em Belém e levanta vôo.
Ao longo do
trajecto entre Lisboa, as Canárias, Cabo Verde, Fernando de Noronha e a costa
brasileira, a Marinha destacou navios de forma a prestar assistência à
expedição. A viagem seria atribulada ao aproximar-se da costa brasileira, e
seria muito atrasada quando o «Lusitânia» é perdido na amaragem junto aos
penedos S. Pedro e S. Paulo, tendo os dois aviadores sido salvos pelo cruzador
«NRP República». De Lisboa, é enviado um segundo avião, o «Pátria», de forma a
retomar a viagem desde o ponto em que fora interrompida, mas o azar de novo
acontece e também este avião é perdido numa amaragem de emergência.
Mas não era
admissível desistir. De Lisboa larga o cruzador «NRP Carvalho Araújo» com o
terceiro Fairey IIID a bordo, mais tarde baptizado «Santa Cruz». A 5 de Junho,
Sacadura Cabral e Gago Coutinho levantam vôo de Fernando de Noronha em direcção
ao Recife, a partir de onde bastará voar ao longo da costa até chegar ao Rio.
Tiveram, como se sabe, uma recepção apoteótica, com as mais altas honras. Um
dos que fez questão de os esperar na Baía de Guanabara foi Santos Dumont.
Outros vôos
memoráveis foram feitos por Portugueses. Em Abril de 1924, Sarmento de Beires e
Brito Pais, desta vez com o mecânico Manuel Gouveia, partem com destino a Macau
a bordo do Breguet XVI «Pátria», comprado em segunda mão por subscrição
pública, e que foi destruído numa aterragem forçada na Índia. Como a subscrição
pública tinha sido generosa, o «Pátria» foi substituído pelo «Pátria II», comprado
localmente. Mas tal como na travessia à Madeira, o mau tempo estragaria os
planos aos aviadores portugueses: à aproximação a Macau, um temporal impediu a
aterragem e foi decidido tentarem Cantão. No percurso, o motor sofreu uma
avaria que obrigou a uma aterragem de emergência numa aldeia chinesa, acabando
aí a aventura.
Em Março de
1925, a Aeronáutica Militar, de novo num bombardeiro Breguet XIV adaptado com
depósitos suplementares, efectuou a ligação Lisboa-Bolama (Guiné), com escalas
ao longo da costa africana. Chegados à Guiné, após uma viagem de 4000 Kms,
Joaquim Sérgio da Silva (piloto), José Pedro Pinheiro Correia (navegador) e
Manuel António (mecânico) são recebidos pelo governador da província com a
notícia de que está em curso uma revolta indígena e de que o avião é necessário
para apoiar as tropas. Não tendo - obviamente - trazido bombas consigo, o
Breguet XIV efectua um bombardeamento com bombas aéreas improvisadas: granadas
de mão às quais se soldaram aletas feitas de metal das latas de conserva, para
poderem ter alguma precisão e acertar no alvo.
O triunfo na
travessia do Atlântico não refreou a ambição de Sacadura Cabral. O seu novo
projecto batia tudo o que tinha sido proposto até então: a volta ao mundo em
avião, em sentido inverso à da viagem de Fernão de Magalhães. Isto numa altura
em que ninguém tinha ainda atravessado o Oceano Pacífico (o que só viria a
acontecer em 1928). Surpreendentemente, obteve apoio do Governo, e foram
encomendados na Holanda cinco aviões Fokker, desta vez monoplanos e construídos
de propósito para a viagem. Numa das viagens de entrega dos aviões, em 15 de
Novembro de 1924, Sacadura Cabral perdeu-se no nevoeiro cerrado e desapareceu
no Mar do Norte, ao largo da Bélgica. Gago Coutinho, que tinha 53 anos aquando
da travessia do Atlântico, prosseguiu a sua brilhante carreira na Armada, tendo
atingido o posto de almirante. Faleceu em 1959.
Lembrar a vôo
Lisboa-Rio de Janeiro de 1922, primeira travessia do Oceano Atlântico com
navegação astronómica, e primeira do Atlântico Sul, não é apenas homenagear os
dois protagonistas da aventura e a organização que esteve por trás: é lembrar
algo que foi umas das raras coisas boas que aconteceram nesse período negro da
História de Portugal que foi a Primeira República, e um acontecimento que não
só foi positivo para a auto-estima dos portugueses como foi um motivo de
orgulho e prestígio internacional. E é homenagear os aviadores portugueses
dessa época - hoje tão desconhecidos e injustamente afastados do quadro de
referências históricas - que, num misto de ciência, coragem e loucura, se
aventuravam mar adentro confiando na tecnologia rudimentar da época (que para
eles era a mais sofisticada) em aviões biplanos lentos, de estrutura de madeira
coberta de tela, de um só motor, sempre de cabeça de fora do cockpit durante
muitas horas, por vezes sem rádio nem ajuda do exterior, e para quem conceitos
como o radar ou o GPS seriam impossíveis de imaginar. Era outra gente. Era
outra maneira de estar na vida. Oxalá nos inspirem no momento que atravessamos.
Heróis ao mais alto nível.Nunca deveriam ser esquecidos.Pobreza de um povo que esquece os seus verdadeiros heróis.
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