sábado, 1 de abril de 2017

Expulsão dos Judeus da Península Ibérica


31 de Março de1492: Édito dos Reis Católicos decreta a expulsão dos judeus de Espanha

Em 1492 um decreto dos reis católicos, Fernando de Aragão e Isabel I de Castela, rompeu com uma longa tradição de tolerância religiosa em Castela, Leão e Portugal. O édito foi publicado a 31 de Março: os judeus de Castela e de Aragão eram obrigados a converterem-se ao cristianismo, sob pena de serem expulsos de Espanha num prazo máximo de quatro meses.

No Decreto, os Reis católicos ordenavam: “Que todos os judeus e judias de qualquer idade que residem em nossos domínios e territórios, que saiam com os seus filhos e filhas, seus servos e parentes, grandes ou pequenos, de qualquer idade, até o fim de Julho deste ano, e que não ousem retornar a nossas terras, nem mesmo dar um passo nelas ou cruza-las de qualquer outra maneira. Qualquer judeu que não cumprir este édito e for achado em nosso reino ou domínios, ou que retornar ao reino de qualquer modo, será punido com a morte e com a confiscação de todos os seus pertences”.
Os judeus não convertidos tinham de sair de Espanha até 31 de Julho de 1492. Posteriormente o prazo foi alargado até 2 de Agosto desse ano. O decreto foi escrito por Juan de Coloma e assinado em Alhambra, Granada, reconquistada aos mouros em 2 de Janeiro daquele ano.

Em 1492, os reis católicos tomaram Granada, expulsando definitivamente os muçulmanos da península Ibérica. Senhores absolutos da Espanha e contando com o apoio do papa Sisto IV, que reconheceu oficialmente a Inquisição espanhola numa bula de 1478, os soberanos de Castela e Aragão assinaram o Decreto de Alhambra em 31 de Março de 1492, que expulsou os judeus do reino espanhol. De acordo com esse texto, todos os súbditos hebreus deveriam converter-se ao catolicismo ou partir. Apesar da enérgica acção de Isaac Abravanel, funcionário da corte de Isabel de Castela que tentou obter a anulação do decreto, as perseguições intensificaram-se.
Desde a Idade Média que a população judaica era olhada com alguma desconfiança, tanto em Espanha como em Portugal. E isso tinha uma causa: os judeus trabalhavam para o rei na cobrança das rendas e na organização da contabilidade pública. Os ocasionais ataques a judiarias tinham quase sempre esta motivação. Mas mantinha-se a tolerância quanto à religião.

No final do prazo dado pelos reis católicos, em Julho de 1492, milhares de judeus atravessaram a fronteira, tendo Dom João II permitido a entrada dos refugiados e nomeado locais onde poderiam ser integrados: Olivença, Arronches, Figueira de Castelo Rodrigo, Bragança e Melgaço. Na raia, os judeus espanhóis pagavam uma espécie de portagem e, em troca, recebiam um salvo-conduto. Àqueles que exerciam uma profissão, os funcionários régios faziam um desconto, uma vez que eram tidos como mão-de-obra útil à economia nacional: ferreiros, carpinteiros, oleiros, tecelões.
Ao longo do tempo a atitude de D. João II para com os judeus expulsos de Espanha foi ganhando contornos terríveis. Em 1493 ordenou que os filhos menores fossem retirados aos pais e enviados para São Tomé, que precisava de ser povoado. A ilha tinha então grande número de crocodilos, além de um clima hostil, pelo que a maioria das crianças foi comida pelos animais. As restantes sucumbiram à fome.

A documentação coeva não permite definir, com rigor, o total de judeus desterrados. O arqueólogo e etnógrafo Adriano Vasco Rodrigues escreveu que seriam perto de 100 mil; a historiadora Maria José Ferro Tavares, autora de uma vasta bibliografia sobre os judeus em Portugal, preferiu não indicar qualquer número; o historiador Lúcio de Azevedo estimou 120 mil; Damião de Góis escreveu sobre 20 mil famílias; e o Abade de Baçal quantificou 40 mil pessoas.
A maioria destes cidadãos dirigiu-se para as grandes cidades: Lisboa, Porto e Évora. Contudo, uma parcela considerável da população fixou-se na raia, na zona de Ribacôa. Por isso mesmo, existiram comunidades hebraicas em Pinhel, Vila Nova de Foz Côa, Meda, Marialva, Numão, Trancoso, Guarda e Sabugal. A decisão de viver em povoações fronteiriças justificava-se pela esperança, acalentada por muitos refugiados, de que o decreto de expulsão fosse revogado, possibilitando assim o regresso a Espanha.

A autorização de entrada atribuída por D. João II tinha, no entanto, um prazo de validade: o salvo-conduto extinguia-se ao fim de oito meses. Os judeus poderiam viajar para outras paragens, mas o rei só lhes permitiu embarcar em navios com destino a Tânger e a Arzila. Alguns fizeram-no, mas acabaram por regressar a Portugal depois de terem sido maltratados e roubados pelos mouros.
“Os Judeus de Lisboa são riquíssimos, cobram os tributos reais, que arremataram ao Rei. São insolentes com os cristãos. Têm muito medo da proscrição, pois o Rei de Espanha ordenou ao Rei de Portugal que expulsasse os marranos e da mesma forma os Judeus, aliás teria guerra com ele. O Rei de Portugal, fazendo a vontade ao de Espanha, ordenou que antes do Natal saíssem do reino todos os marranos.

Jerónimo Münzer in “Viagem por Espanha e Portugal. 1494-1495”

D. João II morreu em 1495, deixando o trono sem sucessor, pois o seu filho, Afonso, morrera alguns anos antes. A coroa foi então herdada por D. Manuel, cunhado e primo direito do monarca. Nos primeiros anos do reinado, a comunidade judaica viveu em paz, tendo o rei escolhido o judeu Abraão Zacuto para seu médico particular (Zacuto era também matemático e astrónomo, tendo sido consultado antes de o rei enviar a expedição de Vasco da Gama para a Índia). D. Manuel I desejava uma união da Península Ibérica, debaixo da sua coroa, naturalmente, pelo que propôs casamento a D. Isabel, viúva de Afonso e filha mais velha dos reis católicos. A proposta foi aceite por D. Isabel e por D. Fernando, mas sob uma condição: o rei português deveria expulsar os judeus do país.

Em Novembro de 1496, D. Manuel I casou com D. Isabel e logo no mês seguinte decretou a ordem de expulsão dos judeus (e dos mouros), obrigados a sair do país até finais de Outubro do ano seguinte. Caso não o fizessem, seriam condenados à morte e todos os seus bens seriam confiscados pela coroa. Contudo, a decisão não recolheu consenso no Conselho de Estado, que alertou para a fuga de capitais do país. Pretendendo reter os judeus em Portugal, o rei ordenou então que aqueles que se convertessem ao cristianismo poderiam permanecer no país. E agendou um prazo para os baptismo: a Páscoa de 1497.


Denominado “Que os Judeus e Mouros forros se saiam destes Reinos e não morem, nem estejam neles”, o édito de 5 de Dezembro decretava o seguinte:

“… sendo Nós muito certo, que os Judeus e Mouros obstinados no ódio da Nossa Santa Fé Católica de Cristo Nosso Senhor, que por sua morte nos remiu, têm cometido, e continuadamente contra ele cometem grandes males, e blasfémias em estes Nossos Reinos, as quais não tão somente a eles, que são filhos de maldição, enquanto na dureza de seus corações estiverem, são causa de mais condenação, mais ainda a muitos Cristãos fazem apartar da verdadeira carreira, que é a Santa Fé Católica; por estas, e outras mui grandes e necessárias razões, que Nos a isto movem, que a todo o Cristão são notórias e manifestas, havida madura deliberação com os do Nosso Conselho, e Letrados, Determinamos, e Mandamos, que da publicação desta Nossa Lei, e Determinação até por todo o mês de Outubro do ano do Nascimento de Nosso Senhor de mil quatrocentos e noventa e sete, todos os Judeus, e Mouros forros, que em Nossos Reinos houver, saiam fora deles, sob pena de morte natural, e perder as fazendas, para quem os acusar.”
A conversão forçada começou com uma medida trágica. Na Páscoa de 1497, Dom Manuel I mandou que os judeus menores de 14 anos fossem entregues a famílias cristãs de várias vilas e cidades do país. Pouco depois, a ordem estendeu-se aos jovens com 20 anos. E os resultados foram horríveis. Muitos pais mataram os seus filhos, degolando-os ou lançando-os em poços e rios, contou Damião de Góis. A perseguição não ficou por aqui. O monarca restringiu ainda o número de portos de embarque para aqueles que queriam sair do reino, obrigando-os a concentrarem-se na capital. Segundo Jorge Martins, cerca de 20 mil pessoas, oriundas de várias zonas, foram encaminhadas para o Palácio dos Estaus (futura sede da Inquisição, localizada onde é hoje o Teatro Nacional D. Maria II), ali permanecendo, sem comer e sem beber, até ao momento do embarque.

A ideia de aprisioná-los nos Estaus tinha um motivo.

Enquanto aguardavam pela partida para o estrangeiro, foram visitados por dois judeus conversos, Nicolau, médico, e Pedro de Castro, eclesiástico em Vila Real.

Os dois homens tinham uma missão: persuadir os judeus a converterem-se ao cristianismo. Muitos acabaram por ser levados para as igrejas da Baixa e baptizados contra a sua vontade; outros conseguiram fugir e suicidaram-se, atirando-se a cisternas e a poços.
Aqueles que, não tendo sido baptizados, ficaram no país, já como escravos do rei, apresentaram uma proposta a D. Manuel I. Aceitavam a conversão, mas pediam algo em troca: a restituição dos seus filhos; e a garantia de que o rei não ordenaria qualquer inquérito sobre as suas práticas religiosas num período de 20 anos. D. Manuel I anuiu. E a 30 de Maio de 1497 foi publicada a proibição de inquirições sobre as crenças dos recém-convertidos ao cristianismo. Ou seja, consentiu oficiosamente o judaísmo (daqui nasce o criptojudaísmo, a prática clandestina da religião). O decreto tinha ainda outras cláusulas: ao fim de 20 anos, se o cristão-novo fosse acusado de judaízar, teria direito a conhecer os seus acusadores para que pudesse defender-se; caso fosse comprovado o crime de heresia, seria condenado à perda de bens, posteriormente legados aos herdeiros cristãos; os físicos e os cirurgiões que não sabiam latim poderiam utilizar livros de medicina em hebraico; finalmente, os cristãos-novos não deveriam ser tratados de forma distinta, uma vez que estavam convertidos à Santa Fé.

As garantias inscritas no decreto não convenceram, porém, uma parte da comunidade. Muitos optaram por sair do país, levando consigo os seus bens, e os mais ricos negociaram letras de câmbio com os cristãos, para depois serem trocadas noutro país. Isto é: uma parte da riqueza do país estava a fugir. D. Manuel I entendeu que devia agir e, em 1499, reagiu à fuga das fortunas com a publicação de duas leis: a primeira proibia o negócio com os judeus; e a segunda impedia a saída do reino dos conversos de 1497 sem prévia autorização régia. O incumprimento das normas resultaria no confisco dos bens dos infractores.
A 19 de Abril de 1506, Domingo de Pascoela, a minoria cristã-nova sentiu, pela primeira vez em Portugal, uma inaudita violência sobre pessoas e bens. Lisboa estava então assombrada pela peste que assolava a capital desde Outubro do ano anterior. Um período de seca matara os campos nos arrabaldes; escasseavam alimentos; a fome tomava conta da cidade.

Damião de Góis escreveu que naquele dia a igreja do convento de São Domingos estava repleta de cristãos-velhos, pois surgira um rumor de que a 15 do mesmo mês, acontecera um milagre naquele templo dominicano. Os crentes aguardavam uma repetição. E ele aconteceu, aos olhos dos cristãos: uma luz brilhou no crucifixo da igreja e a multidão rejubilou. Menos uma pessoa. Que chamou a atenção para o facto de se tratar de um reflexo de uma das muitas candeias que estavam acesas. Esta pessoa era um cristão-novo, mas para os cristãos-velhos era um judeu e, por isso, alvo de ódio.
Os gritos deram início ao massacre. Os crentes espalharam-se pelas ruas de Lisboa; a esta multidão juntou-se, segundo o historiador António Borges Coelho, a chusma das naus da Índia, que, atiçada pela pregação dos frades, violou, matou e queimou milhares de pessoas. Arrombavam as portas das casas, em busca de cristãos-novos, perseguiam quem tentava fugir, carregavam mortos e vivos para as fogueiras que iam sendo ateadas em vários locais da cidade, como o Rossio e a zona ribeirinha.

O homem foi arrastado para rua e, em poucos minutos, mataram-no e queimaram-no no Rossio. Sabendo do que acontecera, o irmão acorreu ao local e quando gritou pelos assassinos, foi igualmente morto e queimado numa fogueira. No meio da agitação, um frade dominicano bradou um discurso contra os judeus. Em seu redor, a turba vociferava contra a comunidade judaica. Dois frades, Frei João Mocho e Frei Bernardo, juntaram-se ao que estava a discursar, exibindo o crucifixo do “milagre” e gritando: “Heresia! Heresia! Destruam o povo abominável!”.
A matança e as pilhagens prosseguiram por três dias. Segundo os cronistas da época terão sido mortos entre duas mil a quatro mil pessoas; Alexandre Herculano e o historiador norte-americano Yosef Yerushalmi registaram duas mil, o número que obtém mais consenso entre os especialistas.

Damião de Góis, que tinha apenas quatro anos quando aconteceu a chacina, descreveu desta forma o massacre, na sua “Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel”:

“No mosteiro de sam Domingos da dicta cidade está hua capella aque chamão Iesu, & nella hum Cruçifixo, em que foi entam visto hum sinal, a que dauão cor de milagre, com quantos hos que se na egreja acharam julguam ser ho contrairo, dos quais hu cistão nouo dixe q lhe pareçia hua candea açesa que estaua posta no lado da imagem de Iesu, ho que ouuindo algus homes baixos, ho tiraram pelos cabellos arrasto fora da egreja & ho mataram, & queimaram logo ho corpo no resio.

Aho qual aluoroço acodio muito pouo, aquem hum frade fez hua pregaçam conuocandoho cotra hos cristãos nouos, apos ho que sairão dous frades do mosteiro, com hum Cruçifixo nas mãos bradando, heresia, heresia, ho que imprimio tanto em muita gente estrangeira, popular, marinheiros de naos que entam vieram de Holãda Zlenada, Hoestelãda & outras partes, assi homes de terra, da mesma condiçam & pouca calidade, que jutos mais de quinetos, começaram a mattar todolos cristãos nouos que achauam pelas ruas & hos corpos mortos & meos vivos lauçauão & queimauam em fogueiras que tinham feitas na ribeira & no resio, aho qual negoçio lhes seruião escrauos & moços, que cõ muita diligençia acarretauam lenha, & outros materiaes pera açender ho fogo, no qual domingo de Pascoella mattaram mais de quinhentas pessoas. A esta turma de maos homes, & dos frades, que sem temor de Deos andauam pelas ruas conçitando ho pouo a esta tamanha crueldade, se ajuntaram mais de homes da terra, da calidade dos outros, que todos juntos à segunda feira continuaram nesta maldade com mór crueza, & por já nas ruas nam acharem nenhus christãos nouos, foram cometter com vaiues & escadas, has casas em que viuiam, ou onde sabiam que estauam, & tirandohos dellas arrasto pelas ruas, co seus filhos, molheres, & filhas, hos lançauam de mistura viuos, & mortos nas fogueiras, sem nenhua piedade, & era tamanha há crueza q até nos mininos, & nas crianças que estauão no breço há executauam, tomandohos pelas pernas fendeo hos em pedaços, & esborachandohos darremeso nas paredes. Nas quaes cruezas se nam esqueçiam de lhes metter a saquo has casas, & roubar todo ho ouro, prata & enxouaes que nellas achauam, vindo ho negoçio a tanta dissoluçam que das egrejas tirauão muitos homes, molheres, moços, moças, destes inocentes, desapegandohos dos sacrarios; & das images de nosso Senhor, & nossa Senhora & outros Sanctos, com que ho medo da morte hos tinha abraçados & dalli hos tirauam, mattando & queimando misticamente sem nenhu temor de Deos assi a ellas quomo a elles.
Neste dia pereçeram mais de mil almas sem hauer na çidade quem ousasse de resistir, pola pouca gete de forte que nella havia, por estarem hos mais honrrados fora, por caso da peste. (…)”

Nesta mesma crónica, o historiador descreveu ainda a actuação do rei, que foi informado do que estava a acontecer em Lisboa quando estava em Aviz, a caminho de Beja para visitar a mãe, a infanta D. Beatriz. D. Manuel I ficou “triste” e “enojado”, tendo dado de imediato poderes ao Prior do Crato e a D. Diogo Lobo para castigarem os culpados. O problema era identificar os culpados. Uma cidade inteira revoltara-se contra os judeus e matara aqueles que não conseguiram escapar. Muitos portugueses (Damião de Góis conta que, entre os assassinos, estavam também estrangeiros, quase todos marinheiros, que recolheram às naus com os saques) foram presos e condenados à forca. Góis escreveu que Frei João Mocho e Frei Bernardo foram queimados na fogueira, num local público, mas o ensaísta e professor António José Saraiva defendeu que os dois frades escaparam à condenação, argumentando que, 36 anos depois do massacre, ambos estavam vivos e ao serviço de D. João III em Roma.

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