Em 18 de Junho de 1384, houve um combate entre
uma armada portuguesa de 17 naus e 17 galés comandada por Rui Pereira, e a
armada espanhola que bloqueava Lisboa. Começou o fim do bloqueio espanhol a
Lisboa.
Pouco antes de
Aljubarrota, naus castelhanas entraram no Tejo e cercaram Lisboa. Alguns navios
portugueses com mantimentos para a cidade sitiada ainda conseguiram atravessar
o bloqueio, numa batalha em que Portugal perdeu três naus e o comandante da
frota, mas o cerco manteve‑se, até os marinheiros de Castela serem derrotados
pela peste negra.
Da última vez que Lisboa
se vira cercada, um rei português – Afonso Henriques – estava do lado de fora.
Mais de 200 anos depois, os portugueses encontravam‑se dentro das muralhas, a
tentar resistir ao poderoso invasor castelhano, e o Tejo voltou a ter um papel
preponderante, novamente a nosso favor.
O caminho para o ataque
ao reino de Portugal começou a ser traçado a 17 de maio de 1383, em Badajoz.
Nesse dia, na cidade fronteiriça, D. Fernando, o nono rei português e o último
da dinastia dos Borgonha (de Henrique de Borgonha, pai de Afonso Henriques),
casou a sua única filha, Beatriz, de dez anos, com o rei D. João I de Castela,
dezasseis anos mais velho. Era, obviamente, um casamento de conveniência, muito
bem pensado pelas melhores mentes políticas em redor do monarca e que serviria
de ponto final às constantes guerras entre os dois países. A opção pelo
castelhano em detrimento de um príncipe inglês ou francês, quando os nossos
vizinhos mantinham vivas as pretensões à anexação de Portugal, seria compensada
pelo Tratado de Salvaterra de Magos: o filho dessa união viria para Lisboa aos
três meses de idade e ocuparia o trono com a morte de D. Fernando. Evitava‑se,
desse modo, que o soberano unisse os dois estados sob a mesma coroa.
Os tratados, nesse e
noutros tempos, não valiam a cera com que eram selados. D. Fernando morreu daí
a sete meses, tuberculoso, com apenas 37 anos, e logo João de Castela esfregou
as mãos de cobiça. D. Leonor, viúva do monarca português, autoproclamou‑se
regente em nome da filha e do genro, com o amante galego conde Andeiro ao seu
lado e a contragosto do povo. Um grupo de nobres, apoiado pelos poderosos
mercadores de Lisboa, viu aqui uma oportunidade para abrir as hostilidades com
Castela e colocar no trono João, mestre da Ordem de Avis e filho bastardo de D.
Fernando. O conde Andeiro tornou‑se a primeira vítima do conflito, trespassado
pelo mestre de Avis, com a estocada de misericórdia a ser desferida pelo barão
Rui Pereira, tio de um militar de 23 anos chamado Nuno Álvares Pereira.
Invasão e cerco
A resposta, previsível,
foi a invasão de Portugal. Se Lisboa não se entregasse de boa vontade, seria
tomada pela força. A tarefa não se adivinhava fácil, nem mesmo para o maciço
exército de João I de Castela. D. Fernando fortificara a capital, alargando as
muralhas e erguendo 77 torres defensivas. Só pela fome, cortando o
abastecimento de comida, Lisboa cairia. No dia 29 de maio de 1384, as forças
estrangeiras fecharam o cerco. Largos milhares de soldados circundaram as
fronteiras terrestres da imponente cidade, enquanto uma numerosa frota soltou
amarras à porta do Tejo (mas a uma distância segura das perigosas torres
defensivas), para impedir a entrada de barcos com provisões. João, mestre de
Avis, ficou preso dentro de muros.
Antes do bloqueio, os
conselheiros do novo rei anteviram a estratégia naval – ou melhor, fluvial – de
Castela. O bispo de Braga, que acompanhava o mestre de Avis, fora então
incumbido de reunir todos os navios disponíveis no território aliado e formar
uma armada que fosse capaz de enfrentar a frota inimiga. Entre Lisboa e o
Algarve, D. Lourenço juntaria 13 galés e sete naus, recheadas por uma
tripulação de três mil marinheiros e 800 soldados. Uma força de respeito, mas
ainda insuficiente para combater a esquadra castelhana que se aproximava do
Tejo. Duas semanas antes de Lisboa se ver sitiada, já os navios zarpavam em
direção ao Porto, para tentarem recrutar mais embarcações de guerra e regressar
com preciosos mantimentos para a população alfacinha.
Na Cidade Invicta, a
armada lusa foi reforçada com mais quatro galés e dez naus, elevando o número
de embarcações para 34, incluindo cinco grandes naus de guerra. Os líderes da
expedição, Rui Pereira e o alcaide de Coimbra, D. Gonçalo, acreditavam que
seria suficiente para desbaratar os castelhanos fundeados no rio de Lisboa e
decidiram partir. O jovem condestável Nuno Álvares Pereira, líder das forças
portuguesas, bem enviou mensagens ao tio, a implorar‑lhe que esperasse por ele
e pelo exército que o acompanhava, no caminho para o Porto, para encher as
embarcações com mais umas centenas de homens armados. Em vão. Rui Pereira não
estava muito animado com a possibilidade de ser liderado por um rapazola e
apressou‑se a levantar vela. Pagaria cara a soberba. No Tejo, entre Belém e
Santos, aguardavam‑no 53 barcos de guerra: 13 galés e 40 naus castelhanas
apinhadas de besteiros, arqueiros e lanceiros. O comandante era o experiente e
genial almirante Fernando Sánchez de Tovar, veterano da Guerra dos Cem Anos e
que até já derrotara uma esquadra portuguesa ao largo de Huelva, três anos
antes – e em inferioridade numérica.
D. João de Castela ainda
pensou em abandonar o rio e intercetar os navios lusos ao largo das Berlengas,
mas um dos seus capitães convenceu‑o a não arriscar: a nortada poderia arrastar
as naus para sul da foz do Tejo, e as galés, movidas a remos, ficariam por sua
conta, o que conduziria inevitavelmente a uma derrota naval. Não. A batalha
lutar‑se‑ia em pleno estuário.
Furar o bloqueio
A frota portuguesa
chegou a Cascais a 17 de julho, e aí fundeou, a preparar‑se para o combate.
Entretanto, chegou aos ouvidos do mestre de Avis (com 26 anos, na altura) que o
seu amigo Nuno Álvares Pereira e respetivo exército não haviam embarcado, e que
os barcos estavam muito longe da força de braços necessária para um embate com
a armada inimiga. D. João ordenou, assim, que a esquadra se limitasse a furar o
bloqueio para entregar os víveres à cidade, evitando, tanto quando possível,
engrenar em refregas.
Eram nove da manhã de 18
de julho quando a frota lusa virou a ponta de São Julião da Barra, o local onde
se edificaria o grande forte, 180 anos mais tarde. A hora foi bem escolhida: a
maré enchia e o vento bafejava de oeste, facilitando a navegação para montante.
Na coluna da esquerda, mais perto da margem de Lisboa, vinham as cinco maiores
naus, capitaneadas por Rui Pereira, a proteger as outras duas colunas, formadas
pelas galés e pelas naus mais pequenas.
Os barcos de guerra
castelhanos logo saíram no seu encalço, procurando abalroar as embarcações
portuguesas. Algumas naus portuguesas afrontaram‑nas e as outras fintaram‑nas.
Seguiu‑se um furioso combate de estratégia e de navegação milimétrica. Um jogo
de xadrez flutuante. Gorados os abalroamentos, a batalha alicerçou‑se nas
flechas e lanças arremessadas entre conveses e em tentativas de abordagem. Nada
de guerra de fogo. Os canhões ainda estavam na sua aurora e não eram
suficientemente fiáveis para fazer deles peças decisivas numa batalha. Montar
estas peças de artilharia precárias e traiçoeiras num navio mais depressa
levaria a contenda a inclinar‑se para o lado errado, tão comuns eram as
explosões.
Paulatinamente, os
navios que pelejavam foram empurrados para a zona de Cacilhas e Almada,
afastando‑se de Lisboa. No pico da batalha, as maiores naus lusas – com os
curiosos nomes de Milheira, Estrela, Farinheira e Sangrenta
– viram‑se rodeadas pelas espanholas. Três delas não escaparam e foram
capturadas pelos castelhanos. Na brutal troca de flechas, Rui Pereira acabou
por ser atingido com um tiro de besta na testa. No calor do momento, talvez
impelido pela fogosidade da juventude, o rei D. João de Portugal seguiu para as
docas, meteu‑se numa nau, na companhia de 400 homens e mais alguns barcos de
apoio, e tentou descer o rio para auxiliar os compatriotas. Acabou arrastado
pelo vento e pela maré rumo ao mar da Palha, e só com muita destreza os seus
marinheiros conseguiram voltar à cidade.
O sacrifício de algumas
peças resultou, se não num xeque‑mate, pelo menos num empate técnico que poucos
julgariam ser possível face ao poderio castelhano. Os 31 barcos que
atravessaram o bloqueio aproximaram‑se o suficiente das muralhas – inundadas de
besteiros e lanceiros – para obrigar as naus e galés perseguidoras a recuarem
para o Restelo. As embarcações lusas carregadas de mantimentos aportaram em
segurança nas docas da capital. Os castelhanos, frustrados, regressaram aos
seus postos.
Vencidos pela peste
O êxito português
significava que a cidade conseguiria sobreviver mais algum tempo do que o
esperado ao cerco, mas não muito. A comida transportada não era tanta como se
previa e, além disso, os navios vinham cheios de bocas que também teriam de ser
alimentadas. O mestre de Avis concluiu que a única saída era enfrentar de novo
os castelhanos numa batalha naval, depois de descansados os tripulantes.
Entretanto, chegaram ao Tejo mais 21 naus e três galés inimigas, que obrigaram
o monarca português a abandonar de vez os intentos bélicos.
O almirante Fernando
Sánchez de Tovar, por seu lado, acreditou que o reforço seria suficiente para
atacar as muralhas pelo rio. Nove dias depois do conflito fluvial, lançou a sua
impressionante armada contra Lisboa, mas as fortificações tinham fama de inexpugnáveis
por alguma razão. Sánchez de Tovar foi impiedosamente derrotado. Para lavar o
orgulho, atirou‑se contra a fortaleza de Almada, conquistando a cidade da outra
banda.
O cerco à capital não
durou muito mais tempo. Um aliado inesperado veio salvar D. João e os
alfacinhas: a peste negra. Os soldados forasteiros morriam às dúzias,
diariamente, até que João de Castela teve de ordenar a retirada, mantendo
apenas a esquadra ancorada no Tejo. A situação dos invasores tornou‑se
desesperadamente definitiva quando a epidemia se alastrou aos marinheiros –
matando o próprio almirante castelhano. A 3 de setembro de 1384, os últimos
navios inimigos dobraram a ponta de São Julião para não mais voltarem.
Menos de um ano depois,
o exército dos nossos vizinhos seria dizimado na batalha de Aljubarrota,
terminando de uma vez por todas com as aspirações de João de Castela ao trono
português.
Salvação tripeira
O Porto foi o grande
salvador de Lisboa durante o duro cerco de quatro meses e 27 dias, entregando
quase todos os seus mantimentos guardados à armada portuguesa que se dirigia ao
Tejo. Um sacrifício que deixou a Invicta à míngua, sem um singelo pedaço de
carne para alimentar os seus. Diz-se que a necessidade faz o engenho – e, juram
algumas crónicas, dessa carência nasceu um dos mais famosos pratos portugueses.
Como só restavam na cidade miudezas, como intestinos e estômago de vaca, os
portuenses puxaram pela imaginação e inventaram as tripas à moda do Porto.
Ainda hoje os naturais da cidade são conhecidos popularmente por
"tripeiros".
Sem comentários:
Enviar um comentário